sábado, dezembro 29, 2007

Balanço

I
Estou aprendendo a te desmitificar. Te entendo mais do que devia, te odeio por isso. Queria saber de tudo. Não é possível que seja só isso. Estou cansada. Pro inferno com os finais de ano. Aqui por dentro nada mudou. Sou a mesma e você é o mesmo, desde sempre. Que coisa, pensei que tudo fosse diferente do que é. E por que tudo finge que muda tão rápido? Você diz que vai dormir. Eu duvido.

II
Não se esqueça, isso não é nada. Eu passo, você vai passar. Eu sou livre de você? Não sou. Espero secretamente que você seja incapaz de se libertar disso tudo, porque nesse dia serei menos dona de mim. Há aqui muito amor, um amor que transborda. Mas que também estanca, deixa um balão de ar nas entranhas e, de repente, se esvazia.

III
Agora acho que o pouco que sei de mim foi por causa de você, que nem soube me ter direito. Imagino que já não tenha volta, é tarde para esquecer, tapar os buracos na parede para que eu não veja o outro lado. No que percebo: você me incompleta. E assim me dou conta da importância que isso deve ter para um espírito tão maciço como antes, em uma instância qualquer, era o meu.

IV
Estão faltando algumas peças para que eu te remonte inteiro e assustadoramente real. Às vezes desejo nunca as encontrar, e me lembro forte de quando você era um grande espaço em branco com pequenos pedaços brilhantes de uma imagem que me excitava até que eu quisesse mais e cavasse desesperadamente em busca do resto da foto. Agora que já juntei tantos, me assusto e recolho afobada detalhes de mim para encaixar à força nas lacunas do teu quebra-cabeça. Mal sabendo que eles já estariam lá sem que eu precisasse forçar. Mal sabendo que as peças formavam um retrato que é meu também.

V
Está tarde. Há um mundo repleto de ar e coisas entre nós dois. Há distância, sempre houve, mas ainda assim te quero ver, de perto. Do ponto em que chegamos: avançar. E ainda assim, incompletamente, te querer inteiro e peça, para que eu possa querer fugir apavorada e sozinha de você, o ar e eu.

segunda-feira, dezembro 24, 2007

4:32

Impossível dormir
com tantos buracos
nas gengivas, peles se
soltando dos dedos, pálpebras
escancarando janelas. queria
sonífero pra noites
assim, algum que não
fosse escrever
tão mal.

terça-feira, dezembro 18, 2007

Segunda pele

Você não presta, não. E ainda pensa que me engana. Você é capricho, ouviu bem? Ca-pri-cho. Um vestido que eu achei bonitinho e resolvi comprar, mas que agora não sai do meu corpo, mesmo curto e com um botão defeituoso. Mas se por acaso eu resolver olhar com cuidado, ah, e quando eu quero eu olho cada acabamento, cada costura (sou deveras perfeccionista quando tenho vontade), se qualquer dia desses eu me cansar do teu tecido desbotado, te tiro e, nua, nem te ponho no armário, que é pra não ter vontade nunca mais de te vestir. Nem naqueles dias quentes, quando eu não me importaria muito com as costuras mal-feitas e sairía por aí feliz da vida te exibindo como parte de mim. Como se fosse novo.

terça-feira, agosto 28, 2007

Percurso

Meu amor, me diz que Tokyo não é longe daqui. Me diz que, no meio daquela multidão, distraídos, buscando, indistintos, vazios e um pouco mortos, nós vamos nos esbarrar. E ainda assim, não saberemos de onde, quando ou porque, mas vamos nos reconhecer, você e eu, de algum lugar distante, uma praia escura, Copacabana, Montauk .

quinta-feira, julho 26, 2007

Andy Warhol

Sunday Morning é impossível de escutar por aqui. Parece um alarme falso da tua presença. É só pôr o disco pra tocar que choro e lembro tão doce de ti quanto o início da música que tanto embalava nossas manhãs. Logo depois começa I'm Waiting for My Man, que tem um título cruel, mas fica vazia quando você não levanta pra trocar, porque essa é forte e pode nos acordar mais do que desejaríamos numa manhã de domingo. Femme Fatale. Venus in Furs: antes, I Could Sleep a Thousand Years, agora, Different Colors, Made of Tears.

5/6/2007

domingo, maio 20, 2007

Condição II

Entre as coisas que sobraram
desde que Rodolfo partiu, estão:
a caixa, o laçarote azul e alguns
cacos -- o salto,
ele calculou mal, e o
prato (caríssimo, herdado da avó),
era de porcelana.

quinta-feira, março 29, 2007

Giz

Só te encontro agora pó nas superfícies das coisas, resquício de saudade que eu me forço a não varrer. Fecho os olhos e tento te imaginar pálpebras, sobrancelhas, covinhas nas bochechas -- pareces sereno e sorris como no tempo em que você achava graça no meu cabelo e ria contido para que eu te percebesse sério. Mas agora me apego à detalhes, sou incapaz de diferenciar tua figura do armário, da parede ou da textura dos lençóis. Me atenho a redesenhar as esquinas do teu quarto, a cor das paredes, cada falha na pintura ou mudança na organização das coisas que naquele tempo costumavam me escapar de vista (eu era distraída contando teus sinais e assistindo tuas costas enquanto dormias). Agora calculo obssessivamente a disposição dos objetos do apartamento, sou capaz até de descrever o escuro, mas tua ausência virou tão vazio que é como quando eu acordava à noite e não sabia te dizer se tinha tido um sonho bom ou ruim.

segunda-feira, março 12, 2007

Graus

Primeiro vêm os pensamentos, cada vez mais centrados/dispersos, então a angústia cresce, caminha pelos braços e chega até as unhas, agora roídas até o sabugo. Arrancar a pele dos cantos do dedo seria movimento de extrema meticulosidade, não fosse tamanha a dispersão na qual ele se realiza. Neste meio tempo, manter sempre quando possível os olhos fechados, para que a mente não perca nada, pois é preciso, a qualquer custo, continuar enxergando.

E caminhar de óculos só faz piorar, plastifica a paisagem, despersonifica a cidade tão bem conhecida embaçada, despida da intimidade opaca entre a textura do asfalto e as sombras das marquises. Saber identificar detalhes nos rostos, avistar paredes e ventiladores para além das janelas mais altas, recortar minha própria figura turva que reconhece, resignada, a estranha clareza estrangeira das coisas.

É domingo à tarde na rua São Clemente, e este chão é só poça que me molha os sapatos. Esqueço-me em vitrines e listras, reparo brincos, cartazes, calçadas; sou só paisagem, olhar disperso e obviedade angustiada. Nitidez absoluta.

09/09/2006

segunda-feira, fevereiro 12, 2007

Lucky me

(ou Calhordinha I)

desde que comecei
fumante inveterada, obsessão, marca
registrada, gostava
-- gostávamos --
de luckies.

agora não, foi mais como des-
- ilusão - apontamento - intoxicação? what-
ever: just me, sou mais
free.

quinta-feira, janeiro 25, 2007

Copacabana

Segunda quase terça
fito meus pés de calçadas inóspitas:
latejam buzinas ponteiros, entranhas
que choram pois trocam verões
por noites céus encobertos
de cinzas - etérea eterna angústia, palidez
dos vazios olhares, olheiras
de medo aziadas retinas me
encaram: as minhas doentes
insones febris, refletidas nas
tuas -- doentes, insones
febris.

sexta-feira, janeiro 19, 2007

Dois

Arrisco todo o tempo do mundo, não tenhamos pressa. Ele diz que sente - ele jura - que só dura vinte e cinco, eu otimista, suponho quarenta e dois. Temos, portanto, calculo com as mãos: um dois três anos restantes. É tempo muito para colecionar outonos, admitir ilusões, tatear as terminações de cada nervo, cabelos, omoplatas, sinais nas costas. Combinaríamos escalas de cores, minutos, espelhos foscos e feixes de luz. Ou então, há ainda tempo que obrigue nossas unhas a arranhar paredes, muros de casa, até que arranquem em brasa as dobradiças das janelas, asfixiadas: obscuro carnaval por dentro, carnaval de luz lá fora, máscaras, segredos mil. É cedo. Quem dirá se já, agora, caberia a nós dois pensar em números? Quanto mais nestes poucos, aqueles, que não se contam nos dedos.

sábado, janeiro 13, 2007

Ciranda entre tangos

Me desculpe o entusiasmo, mas não é todo dia que encontro alguém assim tão medido cabido perfeito, e agora já bem sei que não adianta fingir, fugir desse verão tão repleto de terças-feiras, fumaça, e meninos de rua que você não existe nem olha pra mim.

À flor da pele o tal fulano flautista ilustre, experimenta cirandas e agudos para as tantas outras pernas que floreiam em roda, imundo o piso que gruda nos pés. Mesmo no salão cheio estou um pouco sozinha, ensaio a cara de indiferença e já de prontidão aviso que não sei dançar: dois-pra-lá dois-pra-cá, tem que soltar mais os ombros, segue meus passos, deixa que eu te levo. Prefiro sambar assim de longe, finge que não me toca, desvio o olhar, pode provocar que eu sou forte e madura e segura de si. Temos muito em comum, ele diz, parece estranho mas, com licença, posso te beijar?

É claro que prudente seria pedir logo um táxi, sacar a chave de casa, bater a porta do quarto de persianas, lençóis, abajur. Ligar o ar-condicionado, dormir de maquiagem, exausta vazia e um pouco bêbada, como se nada nem ninguém pudesse ter tido a mínima ínfima chance de se aproximar um dia da minha heróica distância particular.

Ao invés disso, pega meu telefone, recito afobada os oito números, repito para ter certeza, pode ser que ele ligue, quem sabe marcamos uma praia, vamos ao teatro ao cinema à ópera ao raio que o parta; ou então não liga nunca mais, pediu por capricho, apenas solícito, estava sendo bem-educado.

Esquece, eu sou só uma trepada em potencial, sou qualquer uma, sou fácil demais. Quando precisar, me dá um toque que eu caio direitinho. Pensa que me engana? Cantarola um tango antigo, tem tristezas, nostalgias da Argentina, ele parece tão sensível... Olha pra mim, eu pareço entusiasmada? Não, não fala. Me abraça outra vez daquele jeito. Espera, eu mal te conheço. Pensando bem, tenho sono, já são cinco da manhã: você pode me deixar na Gávea?

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