quarta-feira, dezembro 27, 2006

Das cinco

a lâmpada oscila esperando a
deixa -- exato iminente momento em fusão
de acender.

me alertaram quanto à hora
de verão - contudo
essa sombra contida, (e as cigarras
já mudas) não combinam mais
com tanta opacidade - luz fria
das seis.

domingo, dezembro 03, 2006

In-fotografável

cabeça baixa em banheiro público
sentir arder a quarta
quinta dose - ou mais -
não adianta forçar:
a garganta só atiça escava
até o fundo


de cada copo - ver queimar
todos os filtros de todos
os cigarros de todas
as noites de todas as lentes
quentes calçadas cores que não são
fotografáveis.

Perna acima

No vestiário, arrastava com os dedos a meia calça rosa: primeiro pelos calcanhares, depois pelos joelhos até as coxas, que resistiam à elasticidade apertada do tecido. Nessa hora, amaldiçoava o excesso de carne daquela região, beliscava a pele e observava cada relevo da superfície da perna. Depois, as sapatilhas: desenrolava as fitas, protegia a ponta dos dedos com um pedaço de espuma macia e aplicava-as com cuidado no pé, finalizando com um nó no cetim do tornozelo. Ensaiava uma subida nas pontas, e com alguma pressa e muitos grampos, esticava o cabelo em um coque. Em frente ao espelho da sala, escorregava os pés para cada vez mais longe um do outro, até alcançar uma posição totalmente confortável na abertura do espacato. De pé, era só ouvir o barulho abafado do gesso da sapatilha no chão de madeira e breu, batendo cadente com a valsa martelada suave ao piano. Era dia de treinar grand jetés.

terça-feira, novembro 28, 2006

Condição

o nome era Rodolfo:
chegou numa caixa
pequenos furos, laçarote azul
rotina de sol, pernas, alguma
caça. tudo era chato e fácil, quase
óbvio: se espreguiçar de manhã sob o
sol amarelo, fixar o olhar num ponto
ao pé da escada, dormir
quatorze horas por dia.
o difícil mesmo
era se acostumar com a condição de
gato.

terça-feira, novembro 21, 2006

Carta inventada II

Ontem não me contive e pus Chet pra tocar. Fiquei realmente nostalgico e acho que ela percebeu, pois veio sentar comigo na sala de estar com um sorriso meio amarelado no rosto. Não sei, esses domingos têm mania de me confundir. Ficar sentado nesse apartamento enorme, observando Copacabana, contando janelas. Não sei mais. Outro dia, ao revirar a estante encontrei aquele teu volume do Quintana. Lembrei dos meus discos do Chico, se não foram perdidos na mudança, devem estar com você. Um Quintana por uns Chicos: me parece uma troca justa. A vida continua igual: é pior quando Ulisses não está. Fico o dia inteiro ouvindo sobre pessoas que gostaria de conhecer só de nome e tomo prosecco com ela pensando sempre que é cedo demais para beber (ela tem mania de comemorações). Larguei a academia e voltei a fumar. Tenho tido umas tosses, dores no joelho, devo estar envelhecendo. Mas estou muito bem, obrigado, muito melhor do que estava no meio daquelas malhas e corpos e músculos e ferros. A Maitê planeja uma viagem à Europa no final do ano, não quero ir: passear por Paris e me sentir obrigado a visitar a Elise e o Jano em clima de natal não me anima nem um pouco. Tem sido assustador pensar nisso em meio aos porres de champagne. Me desculpa se só falo nela, ando meio obsecado. Obsecado ao contrário. Se quiser te mando teu Quintana.

uns beijos

terça-feira, novembro 14, 2006

Metonímia

Para escrever bonito, me ensinaram expressões grandiosas e doces. Comentaram a extrema importância de um vasto léxico e do conhecimento (profundo!) de todas as palavras. Então passei a definir com cuidado compota, cheiro, despretenciosamente, saudade e morango. Tirei tudo isso de letra, fiz direitinho a lição de casa e, em pouco tempo, eu engolia dicionários com a avidez de quem aprende a falar.
Mas logo depois descobri que me ocultaram um detalhe imenso, como só a palavra minuciosamente escolhida poderia descrever: pri-mor-di-al. O bom escritor deve saber muito mais que palavras: é preciso, antes de tudo, esquecer-se delas. E reinventá-las, ao ponto em que o sentido de saudade se mescle com o de cheiro, e assim, sem pretensão, morango e compota sejam uma coisa só. E vice-versa.

segunda-feira, outubro 23, 2006

Anteontem sempre quinta-feira

Você me pára naquela esquina imunda e eu já mais que tonta, vendo dois de ti, eu metade você. Ali só chovia chovia chovia e eu com cigarro encharcado na mão, nó na garganta e o estômago revirando aquela noite que nunca podia ter mesmo dado em nada. Te perco em meia hora, te acho e esnobo, fujo, fico, não penso em nada porque já era para termos ido embora depois do terceiro chope, misturado com o que mesmo? Ah, sim, alguma coisa com cheiro de passado: você diz que tive a infância conturbada, meu bem, era melhor que agora, sem essas ruas imundas cheias de ambulantes e latas e garrafas pelo chão de pedra portuguesa, isso não. Nem tinha esse gosto amargo de pinheiro de natal, que sempre foi tão doce na época dos meus nove.
Chega, que esse jeans me aperta demais, meus olhos coçam, tanto rímel, tudo é turvo e já quase amanheceu. Canso dessa realidade estragada: me ajoelho em qualquer banheiro de bar, prendo os cabelos, e com concentração cirúrgica enfio o dedo na garganta: vomito de vez toda a podridão dessas madrugadas de quinta. Recomponho-me, ajeito o laço da blusa, puxo o sutiã, lavo a boca e penteio a franja: estou de pé. Retoco o blush, rímel, sombra escura nas pálpebras, olhar de boneca. Corro para você o mais rápido que permitem os saltos, e agora estamos sós, nós dois muito pálidos suando frio nesse quarto escuro, censurando vícios, dividindo medos. Unhas roídas, alguns fantasmas, membros que tremem. Mais que tonta, enxergo dois de ti, eu turva, metade você metade chuva rímel pinheiro de natal salto alto e pedra portuguesa, eu estrago, eu estômago. Depois de amanhã tem mais.

segunda-feira, outubro 09, 2006

I

não me lembro bem mas
acho que devias ser moreno, olheiras fundas e covinhas
alguma barba mal-feita e de passo ligeiro me veio
com muitos rodeios falar sobre o tempo
eu distraída não vi nem rabisco
retrato telefone assinatura
letra ou rosto, mal deixou
não lembrei de te esquecer mas
uma pena

te esqueci.

terça-feira, setembro 05, 2006

Intenções

Naqueles dias gelados, só restava respirar daquele único jeito pesado que a rinite lhe permitia e cruzar os dedos para que fosse capaz de jogar tudo para o alto, inclusive algumas máscaras que deixaram de servir. Não pensar. Mas isto, claro, seria impossível, vivia num mundo de gente grande agora, nada de impulsos sem primeiro esclarecerem-se intenções. Sentada em frente ao fogo com livro e cigarro na mão pensando pensando pensando, que burra, naquela casa cheia de janelas e corredores, ninguém nem ela mesma ali, mesmo ali na luz não era ela nem ninguém. Assim somando-se a paisagem alaranjada uma tosse espessa e uma farpa que penetra vigorosa na sola do pé, tem-se uma perfeitamente despretensiosa meia-noite de segunda, logo antes de ele vir falar de.

terça-feira, agosto 29, 2006

Pequena nota urbana

Coca-cola, uns ventos e uma
da madrugada de terça
num Rio sem cristo nem bossa
da varanda aqui é só asfalto,
umas plantas
murchas
e orquídeas de plástico.

sábado, agosto 19, 2006

Unbreakable

Prova diferentes sensações, espreme cada prazer até o bagaço e mastiga um pouco da casca. Costuma pensar que ce n'est pas grand chose. É só mais um, é só uma noite, é só uma música. Não é não, minha cara, é tempo, e tempo é tempo e só, mas passa. Depois não existe mais nada atrás além de tempo passado, e de frente só tempo futuro que não passou ainda. Camiseta de alguém sem rosto, Unbreakable, ela pensa que é. Não é não, é até muito frágil, fachada de vidro. Lucky stroke. Escorregou mas ergueu-se escondida, como fumaça de cigarro americano. E sente uma quentura que vem nãoseideonde, e faz nãoseioquê, mas é forte e insiste em existir ao menos morna. Tropeça em mil cotovelos azuisvermelhosverdes dançando todos música de filme, compassada, que chega quase explodindo no meio do peito. Mas nunca chega lá, no centro. Bem aonde já não sabe mais chegar depois de tanto tempo sem quedas. Depois de queda é diferente. Mas não tem explosão, não. Tem tentativa dê. O som contorna o peito, comprime as beiradas, e a cada som-gosto-toque, a cada quadro (tombo e chão) levanta-se a espera de tempo presente, até cair. E quebra.

quinta-feira, agosto 17, 2006

Concentração

antes eu era
pé-ante-pé
ensaio de passo e olhar
no chão

agora não
cansei de
concentração
deixei de ser perrapado e virei
pé-de-valsa.

quarta-feira, agosto 02, 2006

Carta inventada a um meio amor

Com a ponta dos dedos, tateio de um extremo liso da superfície da chave ao outro, grosseiramente sinuoso. Engraçada essa tua mania de extremos, oito ou oitenta, me faz fazer juras de amor, me fala de posse. Meu bem, talvez você não me entenda, mas quero que você se vá, eu me vou por enquanto levando até ser digno de ti. Preciso de mim, entende? Me perdi, não consigo saber de nós dois quem é quem depois de tanto tempo, e te conheço bem a ponto de saber que agora me lês com olhar de pura descrença, até com um certo nojo. Sempre me assustei com o teu jeito tão forte, tão sensível a tudo, nada à tua volta não tem teu pleno conhecimento, sentidos múltiplos, só atenção. Eu sou só e quase reação, sempre preferi digerir aos poucos, primeiro o passo, depois a queda, em seguida o tombo, então finalmente a dor, tudo minuciosamente ruminado, quadro a quadro. Me desconcerto a cada impasse e, desastrado, analiso, desgasto, espremo cada impulso, entendo tua repulsa. Também não quero me esparramar em desculpas pra você, dizer que o problema é comigo e fugir safo como um preso solto por bom comportamento. Mas só de olhar já assusto, tantos cabelos, perfumes, bocas, é difícil te dizer isso, por isso escrevo. Não sei se falo demais e sinto de menos ou se é justamente o contrário, esse tempo frio tem a mania de me deixar confuso, mas te peço, por favor: não me faz escolher uma das pontas, não me venha com os teus extremos. Quero antes o meio termo, o morno, a parte maior das chaves, lisa e sinuosa, acidentada e precisa, pequenina e vasta.

terça-feira, agosto 01, 2006

Joaninha

que quer dizer 'carochinha'?
de que cor é a linha
do fio
da meada?
não se incomode, doutor
tô dando um'olhadinha
mas tô sem regador
onde é que apaga o sol?
cadê o homem do saco
e o pai do carrapato?
brincar com fogo não
faz fazer xixi na cama
quanto custa uma banana?
onde mora a mãe joana?

domingo, julho 02, 2006

Sobre begônias e gânglios

Vive, de fato, errônea em um mundo à parte, mas na maioria das vezes, consegue disfarçar bem. Não sente apreço por manhãs, salvo aquelas em que existe alguma pressa, alguma urgência. Manhã vazia por manhã, preferia a noite. De madrugada tudo era mais nítido, a cúpula achatada do abajour, o barulho de um carro lá fora, o som dos dedos percorrendo o teclado. Também nítida era a solidão, embaçada apenas por uns muitos devaneios, sem rosto uma boca respirando na base do pescoço, uns braços. Lia. Adentrava a noite e lia, era e sentia cada um dos personagens, cada conto existia, real e absurdo, formando vida e mundo ao redor da cama. E depois, exausta, a cabeça pulsando, mil bocejos, espirros. A mente traindo todo o resto do corpo cansado, resitente ao sono e ao escuro. As pálpebras rijas, olhar irrequieto, pensa, pensa, pensa, observa e pouco vê. Espera lembrar no dia seguinte de palavras recém-lidas, como 'begônias' ou 'gânglios'. Esquece. E dorme pensando baixinho, os olhos abertos contra o travesseiro, sentindo melancólico o pesar contra o colchão e contra o dia, que nasce atrasado, custa a ser visto e demora a ser vivido, entardece, anoitece, madrugada, sonho e mágoa.

segunda-feira, junho 26, 2006

Entreato

Esbranquiçada invadindo a persiana, arrastava-se a luz pelos corredores e tudo era só bagunça. Cama, gavetas, armários, pensamentos. Cinzeiros cheios, copos vazios, sapatos e papéis, espalhados todos pelo apartamento, disputando o parco espaço com o corpo recém-consciente na cama, pois era, também, de alguma forma, manhã. Assim como todo o resto, bagunçava-se o tempo: duas e vinte e cinco com cara de nove e meia. Precisava comprar cigarros, quem sabe tomar um café. Abre o armário, escava um jeans, agarra uma camiseta, procura os chinelos, chave, sai. A rua por demais clara, também muito movimentada para um domingo, que diabos, com licença, minha senhora. Sair incomodava, era melhor não gastar exposição. A padaria barulhenta e quente, um expresso e um Marlboro, por favor, e decide também comprar um jornal, três reais, que absurdo, bom dia, digo, boa tarde. A cafeína ajudava a despertar, a rua pelo menos parecia mais opaca, e a mente já arriscando estabelecer uma tosca organização. Uma vez desperto, inicia-se a caminhada de volta, duzentos metros da padaria ao prédio, pouco, não fosse o maldito sinal que não abre nunca, o carrinho de bebê atravancando a passagem, e a preguiça agora pressa. Em casa, de volta, maldita chave que não abre, correspondência, conta, carta não, não estou interessado em descontos para chamadas internacionais. Escorrega pelo braço da poltrona e fuma, olha em volta. Põe um samba triste pra tocar, junta a bagunça num montinho e arrasta-a prum canto, até poder circular e alcançar o telefone. A combinação numérica tão bem conhecida flui rápida entre os dedos e os botões, está chamando. A voz atende muda, respira um alô. Ele poderia conversar por horas, passaria dias falando de si, risada casual, voz segura, masculina. Mas só responde um 'sou eu', seguido de um suspiro dela, como vai, bem, e você, vou bem também. Mais silêncio, mais suspiro, olha, não é uma boa hora, te ligo depois, ok? Desliga. O depois viria doze horas depois, quando, chorando, ela ligaria e diria que aceitava, que queria voltar e ficar só com ele mesmo trancada e solta naquele apartamento e naquele cheiro dele de pele, fumaça e perfume, até que a organização das paredes e portas e coisas reais crescessem ganhassem vida e os cuspissem para a rua, onde o mundo era muito mais claro e cheio e barulhento e dolorido e frio. Até lá, apenas os cigarros acesos um no outro, e os dentes contra os lábios sem dó, e as muitas doses de café ao som de Elis. Até lá ele não limparia os cinzeiros, tampouco fecharia as gavetas ou faria a cama. Até lá, antes dela, armários, livros, copos, pensamentos, vida: era tudo uma bagunça.

segunda-feira, maio 29, 2006

Sereno

Eu queria que a vida não fosse tão crua pela manhã. Vestígios de uma noite mal-dormida: a xícara de chá e o livro na cabeceira, os retalhos de sonho, as olheiras, a neblina usual, o corpo na cama. A solidão matinal de sábado, a casa em silêncio, o frio, a vontade de escrever.
Expectativas que aguardam o dia amanhecer, quase calmas, o banho morno por tomar, a roupa por ser, com cuidado, escolhida, a ligação recebida durante a noite, esquecida. Os compromissos urgentes num dia menor da agenda, a maneira contida de se espreguiçar, o barulho seco do relógio, sete-e-meia, o sol no vidro embaçado, o bocejo. Coisas dessas manhãs frias de quase junho, quando, não sei se pelo frio ou pelo sábado, o dia custa a amanhecer. Dói. A manhã rompe a noite com aquela cor de vidro molhado, aquele cheiro de frio.
E essa vontade louca de sentar e fazer cartas imaginárias, declarações de amor para alguém que, que bom!, não existe, essa fome de pontos e vírgulas e parágrafos antes mesmo da vontade do café, mais urgente que o frio, e tão urgente quanto sem importância. Primeiros desejos. Desvencilhar-se de mágoas, aquecer o peito vazio, obrigar-se a estudar filosofia e física. Queria enfim, não ter que ficar me escondendo pelas frestas escuras das manhãs de sábado, atrás de frases que não escrevo para mim, embaixo de vontades que não são bem minhas. Mas, ainda assim, o dia dói, e ainda dói quando se faz tarde e escurece, e ainda dói quando não é dia.
De manhã, mesmo frias e ainda abertas, estão expostas as feridas de ontem, mais fracas, porém mais claras. E não se vê nenhuma esperança com o sol nascendo depois do vidro, só um frio de não ter onde querer chegar, um vazio de ser verdade, umas letras sem propósito e sem remédio, um lamento desimportante. Ao longe, as aventuras da tarde, os deslizes da noite, as madrugadas torpes. Mais tarde a cachaça, a risada alta e plástica, os olhares ocos através da fumaça. É a vida por trás do vidro, cheia de barulhos e gente, cheia de odores, quente, urgente, exterior. Não uma casa cheia de corredores e portas, mas uma vila, cheia de casas abertas, de velhinhas na janela, com barulhos de cigarra e cheiro de bolo. Mas, ainda assim, de manhã tudo é cru, tudo é só casa, só inseto, só sereno, só sono. A vida, crua, não fede nem cheira. Mas custa a entardecer, e é fria, e dói.

domingo, maio 28, 2006

Desamor

Ele me deixou na chuva, com um cigarro apagado entre os dedos e um nó na garganta. Dei-lhe um abraço, tchau, fui embora sem olhar para trás. Ele acha tudo normal, acha mil amores, ama de uma vez, não a mim. Não perdôo. Já perdi, mas nutro ainda esperanças. Isso me vem corroendo a cada dia agora. Um ano, mais quanto tempo? Quatro meses, cinco, talvez menos. Um ano, e mais o que? Ódio, vergonha, ciúme. Inexperiência minha, descaso seu, meu. Desleixo, deslealdade, azar. Destino? Tempo? Sobriedade, qual? Nunca sóbrios, nunca sérios. Distantes sempre, alheios, mas tão próximos... Se me libertar, até perdôo, mesmo assim, mal perdoado, com rancor e com carinho. De preferência, sem amor.

sexta-feira, maio 12, 2006

Outono

A casa ainda era igual, ainda que não fosse a mesma. Os mesmos móveis, imóveis, conhecidos, em silêncio. A mesma mesa velha e gasta. Seis cadeiras, vazias. Pelas frestas das janelas, o vento frio de quase inverno. O gato na subida da escada, estático, olhar fixo. Antes era o sol pelas frestas das janelas. Outrora era o gato, lânguido, deitado na escada; e as cadeiras todas tomadas, em volta da mesa posta. Os móveis não precisavam ser móveis, rangiam, cantavam, viviam. E a casa não era bem casa, e lá, quase sempre era verão.

sexta-feira, abril 07, 2006

Dominical

O som abafado do ensaio de metais abria espaço, tímido, entre as vozes surdas das pessoas no interior do bar. Enquanto, num canto, a banda se concentrava, ela ia, lentamente, caminhando por aquele recinto comum, não fossem as máscaras e cores e confetes que compunham o quadro, colorindo e mascarando a tênue realidade dominical. Alguém lhe sorriu, ou foi de uma máscara? Seu ar deslocado, seu rosto limpo à mostra e suas roupas de gente quase zombavam da festa, como quem avisa, tímida e secretamente: "vai passar, vai passar...". Fora do bar, os apitos, as espumas, mais máscaras, mais gente, a banda saindo na rua, as velhinhas à janela, as crianças de saias de tule, os narizes vermelhos, serpentinas, buzinas, risadas... Ela iria escrever ou cantar ou pintar o que via, assim que chegasse em casa. Tinha vindo, para quê mesmo? Ah sim, para assistir. Conformara-se, há tempos, em ser ouvinte, espectadora da vida. Para ver e contar o que viu. Multidão. Confetes. Barulho. Era carnaval, sim, e isso já se via na lotação da rua. Era carnaval, e era preciso contar. Cantar. Tambor, tamborim, trompetes, trombones. Barulho. Mú-si-ca. E o bloco saiu. No dia seguinte, ela nada escreveu. Tinha se perdido, igual e diferente, no meio do bloco.

segunda-feira, janeiro 30, 2006

Fotografia

Tentei tirar fotografia
pelos olhos já frios
e entre a mente já gasta.

Os olhos
secos, calejados
tudo marcaram
A mente, porém,
embriagada de tão lúcida
quase nada registrava.

Os dedos roídos de angústia
batiam nervosos num balcão
e sem ritmo ou lógica
esbarravam-se em frênesi
diante de uma rala multidão
indiferente a si
e indiferente à multidão.

Os pés não cansados
já não andavam,
pairavam tortos por asfaltos,
afundavam sérios dentre poças.

Os ombros quietos sussurraram
gritando em uníssono 'tanto faz,
tanto faz...'

Como em fotografia
caía fina a fria chuva
vazia de efeito e vazia de frio
real e fosca, como cor
sorrateira, insensata,
que não se sente,
como sombra.

Peço aos olhos quadro.
Peço à mente impressão.
Peço fotografia, bem como é fotografia, bem como em fotografia:
real, muda e imparcial
alheia, turva e em preto-e-branco
bem como em fotografia.

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