quinta-feira, dezembro 10, 2009

Para Maíra

Fumamos a mesma quantidade de cigarros. Ela usa uma capa vermelha, na parte de dentro um forro com estampa floral, sapatos de verniz. Tem saudades da infância, coisa morta mas que passa ainda viva por um brilho nos mesmos olhos que se deparam com tanto menos mundo do que se imaginava nos contos de fadas. Balões colridos e uma máscara, papai e seu fusca, observa os riscos do asfalto, fazer o que bem entender, ser espontâneo e gostar de tudo. Sonhar, principalmente. Que bom que essa infância se mantém ainda acesa, mesmo que lá no fundo dos olhos, entre um choro e outro e as mil dificuldades, ter um presente, nossos dons: as fadas madrinhas nos traziam na infância, varinha de condão. Bom perceber que eles continuam lá, mesmo depois que os pés crescem e os sapatos deixam de servir, entre as preocupações de adulto e os cigarros, tantos quanto os meus. Quem diria, parte do processo de crescer é entender as fadas e o que elas nos contavam. Usar a capa dos dois lados.

domingo, outubro 18, 2009

Helena e o raio laser

Helena não usa maquiagem, aposta nos óculos de grau e no furo de traqueostomia feito com caneta bic. Sorri, mas tem uma tristeza rápida que percorre os olhos antes que as covinhas se fixem nas bochechas. Helena não se importa em tomar a quarta vodka, limão e gelo, meia-calça preta, cabelo channel. Helena se diverte com as luzes verdes de raio laser no desespero das duas da manhã, perninhas finas como as do banco do bar em chamas, "culpa do seu whisky", ela me diz como se relinchasse.


E é com precisão quase cirúrgica que ela, lasciva, lambe a retina de um barbudo qualquer, boca nos cílios, devassa leve que sem cautela nem nojo deseja o carinho do outro - nunca provou o olho de quem realmente queria. Mas ela não se importa mais com isso: antes dança tímida libertina para qualquer cigarro que a queime na mão.

Helena não gosta de dar risadas, mas rir é um mal necessário. “Vamos embora”, bocejo, com um peso de álcool embaixo dos olhos: basta para que ela me agarre forte pelo braço e me arraste pela calçada rindo e chorando: “não”, ela me diz, gelo e limão em pedaços sobre o cimento já claro: “daqui, só vou embora quando chegar o dia”.

sexta-feira, agosto 07, 2009

Estufa

Mergulho na incapacidade de lhe nomear: naquele ponto, permanecer, quatro retinas que se encostam, atrapalhado relance. Foi como uma promessa de que as coisas poderiam ser em cores: letreiros, supermercados, poças, sol das sete em fumaça de avenida que já não tomamos mais. Pena. Hoje essa ausência é som estranho de silêncio e relógio, madrugada infinita. Mal me lembro, e a conversa, nem sei, a conversa era desculpa para projetar palavras em sentido ambiente, situação qualquer, minutos a mais, futuro rasgando o presente esquisito. Deixar que se perca a naturalidade, ignorar o entendimento e depois permitir o toque, medo de tudo. As formas se distorcendo em braços e mãos e costas, dobrando esquinas, formando estufa e vedando, pronto, mundo de dois formado, bolha firme. Mas as madrugadas não falam sozinhas, é o que descubro todos os dias. E é o tempo todo que procuro letreiro que me ensine a organizar as coisas, que me entregue seu devido nome, néon qualquer que nos guie de volta para casa, para fora de nós dois.


10/2008

sábado, agosto 01, 2009

Trinta

Mentalizar o amante. Tampar o nariz com os dedos, imergir, água azul nos azulejos: trinta, vinte e nove, vinte e oito, vinte e sete, vinte e seis: mergulhar na sensação de homem/água até que ela esteja por toda a parte do corpo, maiô, boca, orelhas. Por algum acontecimento estranho e místico, virar bicho do mar, parte de tudo, azulejo, cloro, escamas. Escoar até o mar inteiro e ser todos os seus bichos e todos os seus sais. Se for possível respirar por baixo das ondas, transmutar-se em sereia e alagar todo o resto do mundo cuspindo rajadas de espuma. Assim nem todos os oceanos serão pequenos demais. Ser então eternamente possuída por aquele ser, monstro maior de todas as águas ferozes, cabelos enormes que dançam com a fúria das correntes, bocas que se encharcam, tempestade, rodamoinho abissal. Três, dois, um: emergir em anseio de ar, nos ombros sentir derreterem pesados os cabelos, bolhas no nariz. Pára e vê: só o que tens são os azulejos antigos dessa piscina abandonada, metade cheia, metade vazia, água parada, maiô desbotado. Respira, que estás sozinha agora.

sexta-feira, julho 10, 2009

Fiorucci

Queixo no peito,
observo na camiseta
dois anjinhos sórdidos como
aquelas duas estrelinhas
(entrelinhas) de ontem
que são sórdidas porque
brilham mesmo tendo morrido
há 35 milhões de anos. Ainda assim,
luz solta, que triste, elas nunca se
tocam,
obrigadas a andar em linha reta.

Será que somos assim,
meu bem? Anjinhos
mortos há tanto tempo que
no entanto
insistem em reluzir,
brilho falso
que viaja no espaço?

terça-feira, junho 23, 2009

Quando o olhar não puxa nem lágrima nem grito nem suspira por calor qualquer, quando só se quer seguir em frente, malas feitas, estou de saída: acabou.

quinta-feira, fevereiro 19, 2009

Sans Soleil

Das palavras que você me ensina: fulgurância, e eu nem poderia dizer se de fato existe, verbete no dicionário, ah, a dúvida. Eu não duvido. Quando tudo o que eu queria dizer era: não há nada, nada que eu queira fazer para romper o que temos. Você não me acredita, eu sei. Mas, meu amor, não troco nossos jogos inúteis de palavras e carinhos por nada no mundo. Fantasio mil vidas em que sempre nos reencontramos, curiosidades do destino incerto, relances: me flagras chorando em banheiro público e me abraças como se estivesses voltando para sempre. Você com outra me olha fixo nos olhos através de multidão, óculos escuros. Nós dois em outros tempos, preocupações de adulto e um olhar que te lanço de vazio e volúpia, louça suja, contas a pagar. Ah, as fantasias, os nossos outros tão enormes e inexistentes micro-mundos, imensos, tão reais que nos sufocam. Fulgurâncias.
-
Há uma gota de chuva na janela, ela escorre pelo vidro, lenta sobrevoa a cidade e presencia dois mundos: esse meu, o nosso, onde você não está, e esse outro, o imenso, a rua de prédios enormes e o universo inteiro, de onde fazemos parte, macrocosmos de reencontro infinito. Soletrar o desconhecido, c-a-p-r-i-c-h-o-s astrais. Meu bem, você assim longe faz parecer que nunca nos fomos apresentados, falseia mundo onde ainda não conheço os sinais das tuas costas, teus cabelos, teus pés. Realidade absorta em solidão, modo de espera, limbo sinistro onde tua língua não alcança meu pescoço. Assim te sonho em qualquer praia sem sol enquanto, imagino, você também me sonha: em praia sem sol qualquer.

quarta-feira, fevereiro 11, 2009

Pique-esconde

naqueles
sábados feitos de dias
úteis - vermelho e azul -
saia nova, sapatos
de verniz, riscos de areia
porque não tinha problema
sujar - depois limpava -
os balanços das tardinhas, ai,
os risinhos, o moço
do algodão.

Realizo para mim, catástrofe:
nós crescemos.

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