segunda-feira, maio 29, 2006

Sereno

Eu queria que a vida não fosse tão crua pela manhã. Vestígios de uma noite mal-dormida: a xícara de chá e o livro na cabeceira, os retalhos de sonho, as olheiras, a neblina usual, o corpo na cama. A solidão matinal de sábado, a casa em silêncio, o frio, a vontade de escrever.
Expectativas que aguardam o dia amanhecer, quase calmas, o banho morno por tomar, a roupa por ser, com cuidado, escolhida, a ligação recebida durante a noite, esquecida. Os compromissos urgentes num dia menor da agenda, a maneira contida de se espreguiçar, o barulho seco do relógio, sete-e-meia, o sol no vidro embaçado, o bocejo. Coisas dessas manhãs frias de quase junho, quando, não sei se pelo frio ou pelo sábado, o dia custa a amanhecer. Dói. A manhã rompe a noite com aquela cor de vidro molhado, aquele cheiro de frio.
E essa vontade louca de sentar e fazer cartas imaginárias, declarações de amor para alguém que, que bom!, não existe, essa fome de pontos e vírgulas e parágrafos antes mesmo da vontade do café, mais urgente que o frio, e tão urgente quanto sem importância. Primeiros desejos. Desvencilhar-se de mágoas, aquecer o peito vazio, obrigar-se a estudar filosofia e física. Queria enfim, não ter que ficar me escondendo pelas frestas escuras das manhãs de sábado, atrás de frases que não escrevo para mim, embaixo de vontades que não são bem minhas. Mas, ainda assim, o dia dói, e ainda dói quando se faz tarde e escurece, e ainda dói quando não é dia.
De manhã, mesmo frias e ainda abertas, estão expostas as feridas de ontem, mais fracas, porém mais claras. E não se vê nenhuma esperança com o sol nascendo depois do vidro, só um frio de não ter onde querer chegar, um vazio de ser verdade, umas letras sem propósito e sem remédio, um lamento desimportante. Ao longe, as aventuras da tarde, os deslizes da noite, as madrugadas torpes. Mais tarde a cachaça, a risada alta e plástica, os olhares ocos através da fumaça. É a vida por trás do vidro, cheia de barulhos e gente, cheia de odores, quente, urgente, exterior. Não uma casa cheia de corredores e portas, mas uma vila, cheia de casas abertas, de velhinhas na janela, com barulhos de cigarra e cheiro de bolo. Mas, ainda assim, de manhã tudo é cru, tudo é só casa, só inseto, só sereno, só sono. A vida, crua, não fede nem cheira. Mas custa a entardecer, e é fria, e dói.

domingo, maio 28, 2006

Desamor

Ele me deixou na chuva, com um cigarro apagado entre os dedos e um nó na garganta. Dei-lhe um abraço, tchau, fui embora sem olhar para trás. Ele acha tudo normal, acha mil amores, ama de uma vez, não a mim. Não perdôo. Já perdi, mas nutro ainda esperanças. Isso me vem corroendo a cada dia agora. Um ano, mais quanto tempo? Quatro meses, cinco, talvez menos. Um ano, e mais o que? Ódio, vergonha, ciúme. Inexperiência minha, descaso seu, meu. Desleixo, deslealdade, azar. Destino? Tempo? Sobriedade, qual? Nunca sóbrios, nunca sérios. Distantes sempre, alheios, mas tão próximos... Se me libertar, até perdôo, mesmo assim, mal perdoado, com rancor e com carinho. De preferência, sem amor.

sexta-feira, maio 12, 2006

Outono

A casa ainda era igual, ainda que não fosse a mesma. Os mesmos móveis, imóveis, conhecidos, em silêncio. A mesma mesa velha e gasta. Seis cadeiras, vazias. Pelas frestas das janelas, o vento frio de quase inverno. O gato na subida da escada, estático, olhar fixo. Antes era o sol pelas frestas das janelas. Outrora era o gato, lânguido, deitado na escada; e as cadeiras todas tomadas, em volta da mesa posta. Os móveis não precisavam ser móveis, rangiam, cantavam, viviam. E a casa não era bem casa, e lá, quase sempre era verão.

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