sábado, dezembro 03, 2005

A ti, a tudo, a nada

Eu também sou de me perder
Quando invoco a mim e não me encontro
Quando confesso, entorpecida, o que sinto e o que não sinto
Quando me faço não compreender, pois sei, e sei que bem se sabe
Que não meço o que digo, peço, faço, confesso
Só sei de relances em mim, sentimentos vagos que eu queria tornar constantes,
mas que me fogem rápido,e por vezes voltam, ou não.

Para mim já não basta a busca, fresca, fluida, espontânea por ti
Precisei e preciso de chão, não de piso,
mas onde eu vá deitar, pequena,
num peito onde eu possa ser fraca.

Me tenho censurado a cada dia agora,
tentando não mais te buscar, me tornar lembrança tua
saudade tua, inadvertidamente, tua,
e, quem sabe, de mais ninguém.

Mas quando a mente ganhou asas,
voou também o coração, e hoje, por mais que eu tente,
por mais que eu queira, mais que tudo,
me entregar, e com palavras, te prender aos meus caprichos,
algo me prende a não me prender.
Isso faz sentido?

Eu tusso os resíduos de verbo da garganta
eu cuspo o que não vem de mim,
não adianta, eu minto,
eu minto pra mim, eu minto pra ti,
na vil tentativa de encontrar a verdade.

Eu faço esses versos por pura vaidade,
lamento chato, futilidade, fingimento poético, hipócrita.

Me façam carta, me endereçem a quem for,
me tornem posse, latifúndio,
me marquem, selem, tatuem em mim as iniciais do proprietário,
me prendam!

Nunca me ensinaram pronomes possessivos,
nem adjetivos, advérbios, onde caibam sentimentos.
Mas bem aprendi dois pronomes,
mesmo assim, indefinidos:
nada e tudo.

E o final eu já conheço, sempre.

segunda-feira, novembro 21, 2005

Fórmula

Eu sou de sono, de letra, de sal e de palha
Eu sou de escárnio e pranto, eu sou de espanto
Eu sou de inércia, de fome, de ódio e de açúcar
Eu sou de aquário

Eu sou disposta, inquieta, tenaz e de ar
Marionete estranha, de pano sujo e remendada
Feita de letras e sangue, de plástico, elástica
Feita de chuva e de sátira
Feita de chá de hortelã

Eu sou de imagem, de cheiro, de colher e de espada
De peito dos outros, de barriga de mãe
De cama, de estômago, de arame e barbante
Feita de giz e cola, rabisco, colagem
Desenho pintado de tinta com tinta no muro da esquina

De súbito, de birra, fui feita de moça
De azar, de aspereza, fui dada a ninguém

E de veia pulsante e de música
De andar por calçadas de asfalto
Debaixo da sombra, de olhos fechados
Sou de me ver como um naco sólido e frágil de carne

De carne e de osso
De sangue e de sonho

sexta-feira, outubro 28, 2005

Sobre a terra

Fui engolindo o mundo de uma vez
até que ele me pareceu uma pedra seca e áspera.
Foi então que eu senti sede
e bebi de um amor que não era meu.
De porre, andei pelo mundo,
que eu já tinha cuspido,
e voltei pra casa insatisfeita.
Sentei na escada pensando se é isso mesmo,
se a vida é uma refeição indigesta que se come com a mão,
para depois cuspir.
Vomitei toda a metafísica e larguei o amor que eu não tinha.
Enjoada de fome, olhei para a rua e vi aquela imensa quantidade de mundo.
Mundo demais para um dia só.
Foi aí que eu perdi a fome
e saí pra jantar fora.


Fora de mim, é claro.

sexta-feira, setembro 02, 2005

O grito

Eu não quero mais lembrar daquilo que eu não vivi, nem sonhar com tudo o que não posso ser.
Tenho visto além do que se vê, e não devo registrar nada.
Eu não quero mais criar manifestos, nem histórias nem contos que nunca saíram da minha cabeça, que nunca saíram por inércia ou porque os julguei ruins.
Quem me dera se eu conseguisse expressar tudo o que eu sinto sem soar clichê.
Escrever por escrever, 'ser gauche na vida'.
Sei que isso é tudo o que me cabe, vim para ver e para contar o que vi.
Queria ter forças pra carregar um fardo desses, mas mal me arrasto, e reclamo.
Queria me dobrar em mil, fazer cartas de mim para mim, oitenta e nove personalidades, uma diferente da outra, engrenagem desmontável, futurista, apressada, industrial.
Mas sou de ferro duro, infelizmente. Sou de ferro duro e frio.
A ferida arde, mas não sangra mais.
Deixaram de acreditar no que antes era urgente.
Bomba nenhuma explodiu.
Nenhum prédio caiu.
Nenhum de nós morreu ainda.
Não, só eu sei; o resto não quer ver, e vive.
Eu não vivo, assisto, apenas.
E não tenho contado a ninguém.

Que diabos aconteceu com o mundo, que de tão cheio, ficou vazio?
E que diabos aconteceu comigo, que não o sinto mais nas costas?
Me calei para tentar viver, mas não adianta:
A garganta queima.

sábado, agosto 13, 2005

Os barcos na baía balançavam, pequenos, longe sob o céu alaranjado. Sentado no píer, ele olhava, bobo, o triste entardecer. Que era aquilo que o corroía o estômago, o queimava por dentro? Até tão pouco tempo era certo de que não sabia amar. E agora, aquilo, era dor de amor? Podia ainda ouvir as palavras dela, cruas, na mente: "Não te amo mais. Vou com o outro. A gente se fala." A despedida com um beijo no rosto. A gente se fala... Falar o que? Acho que já disse tudo, amor da minha vida, a gente se fala, até mais. Já quase noite, ventou. E agora? Que era sem ela? Ah, Maria, porque me deixaste se sabias que eu era fraco? Quis levantar. Desistiu. Vai passar, que importa? Não era então a vida feita disso? Acontece. Depois vem outra, e vai outra, ou ele vai. Uma sucessão incerta de "a gente se fala" consecutivos, um tão triste quanto o outro, ou não. Mas aquela paisagem, a água, os barcos. A água, o vento. A água. Os pés acima da água. Sentiu vontade de afundar, deixar-se cair, deixar-se sumir na baía. Mais perto, mais fundo, mais fácil. Por um momento, quis, mais que tudo, cair. Mas levantou, e saiu andando à procura de um bar. A boca amarga, o passo torto, o triste andar de pierrot, cadente, ilógico. O ar cabisbaixo de um palhaço triste. E a água, o píer, o céu laranja e ele, exaustos, anoiteceram.

segunda-feira, julho 25, 2005

-- Imagine um elefante -- disse ele.
-- Um elefante -- disse o garçom.
-- Imagine dois.
-- Hum...
-- Um, não: dois!
-- Eu sei: dois.
-- Imagine três. Dez. Vinte.
-- Vinte elefantes--sorriu o garçom.
-- Agora, imagine cem, duzentos, mil.
-- Mil?
-- Mil. Se você é capaz. De mil, cinquenta mil, cem mil elefantes. Você é capaz?
-- ...
-- Pois agora imagine um milhão.Um milhão de elefantes galopando, um milhão! Já imaginou?
-- Poeira, hein?
-- Poeira, nada: elefantes! um milhão. Um bilhão, chega?
-- Um bilhão -- o garçom repetiu.
-- Novecentos bilhões. Novecentos e noventa e nove trilhões! de elefantes. Não posso mais. Acho que chega, você que acha?
-- É muito elefante -- concordou o garçom.
-- É: muito. Pois agora você imagine uma pulga.
-- Uma pulga -- e o garçom suspirou, resignado.
-- Isso: novecentos e noventa e nove trilhões de elefantes de um lado: e uma pulga, do outro lado. -- Morou?
-- Não.
--É o terror -- arrematou ele. Me dá um uísque.




[de O encontro marcado, Fernando Sabino]

quarta-feira, julho 06, 2005

"e agora, josé?"

Eles são suor e samba, movidos a feijão-com-arroz. Eles são josés assim, com letra minúscula e acento no e. josé da silva, josé
sem nome, josé-josé. josé de natal, de joão pessoa, do rio e de alagoas. os retratos suados da nossa pátria mãe gentil. os
retirantes. todo brasileiro tem um pouco de josé, o brasil todo é obra de josés. Retratam o povo humilde e bravo que [sobre]vive
em terra seca, gente seca, de vida seca e boca amarga. passeiam pela central como gente comum, suam o pão de cada dia,
lambendo os beiços quando sobra pra cachaça. casam-se com marias, criam outros josés. servem os Adalbertos de Pereira e Lima,
os J. P. Fernandes, os senhores da renda e da dívida. brilham nos olhos a esperança e a inocência. dignidade de josé,
malandragem de josé, ritmo cadente de josé. o josé que sofre quieto de cólera e barriga d'água, o josé sem dente, o josé
raquítico. O Brasil está cheio de josés, e o coração dos josés nunca se enche de brasil, que assim também, com letra minúscula,
suporta os passos deles de segunda a sexta, sábados, domingos e feriados; e traduz, no melhor sentido da palavra,o sentido de ser
josé. joséjoão, josécarlinhos, josédasilva, joséantonio.


"Você marcha, José!
josé, pra onde?"

sexta-feira, junho 24, 2005

Conta-gotas

A minha liberdade está na livre vontade de ser livre
Não está no corpo, nem nos atos ou nas declarações
A liberdade não cabe em poesia
Não existe nem em pensamento.

Ser livre é sentir sem sentir--aspiração.

Desejando, e apenas desejando
Como quem deseja e sente num canto escuro do peito
e nem sabe que deseja
e nem sabe que sente.

Ser livre--pensar em ser livre
e ganhar as estrelas.

Pingar liberdade
fazer vazar do canto do peito
o sonho-- e só o sonho.

Só em sonho eu ganho o mundo
Só assim tenho as estrelas
e sou livre, plenamente livre
em sonho.

E só em sonho.
Utopia.

sexta-feira, junho 17, 2005

lalalalalalla

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