terça-feira, novembro 28, 2006

Condição

o nome era Rodolfo:
chegou numa caixa
pequenos furos, laçarote azul
rotina de sol, pernas, alguma
caça. tudo era chato e fácil, quase
óbvio: se espreguiçar de manhã sob o
sol amarelo, fixar o olhar num ponto
ao pé da escada, dormir
quatorze horas por dia.
o difícil mesmo
era se acostumar com a condição de
gato.

terça-feira, novembro 21, 2006

Carta inventada II

Ontem não me contive e pus Chet pra tocar. Fiquei realmente nostalgico e acho que ela percebeu, pois veio sentar comigo na sala de estar com um sorriso meio amarelado no rosto. Não sei, esses domingos têm mania de me confundir. Ficar sentado nesse apartamento enorme, observando Copacabana, contando janelas. Não sei mais. Outro dia, ao revirar a estante encontrei aquele teu volume do Quintana. Lembrei dos meus discos do Chico, se não foram perdidos na mudança, devem estar com você. Um Quintana por uns Chicos: me parece uma troca justa. A vida continua igual: é pior quando Ulisses não está. Fico o dia inteiro ouvindo sobre pessoas que gostaria de conhecer só de nome e tomo prosecco com ela pensando sempre que é cedo demais para beber (ela tem mania de comemorações). Larguei a academia e voltei a fumar. Tenho tido umas tosses, dores no joelho, devo estar envelhecendo. Mas estou muito bem, obrigado, muito melhor do que estava no meio daquelas malhas e corpos e músculos e ferros. A Maitê planeja uma viagem à Europa no final do ano, não quero ir: passear por Paris e me sentir obrigado a visitar a Elise e o Jano em clima de natal não me anima nem um pouco. Tem sido assustador pensar nisso em meio aos porres de champagne. Me desculpa se só falo nela, ando meio obsecado. Obsecado ao contrário. Se quiser te mando teu Quintana.

uns beijos

terça-feira, novembro 14, 2006

Metonímia

Para escrever bonito, me ensinaram expressões grandiosas e doces. Comentaram a extrema importância de um vasto léxico e do conhecimento (profundo!) de todas as palavras. Então passei a definir com cuidado compota, cheiro, despretenciosamente, saudade e morango. Tirei tudo isso de letra, fiz direitinho a lição de casa e, em pouco tempo, eu engolia dicionários com a avidez de quem aprende a falar.
Mas logo depois descobri que me ocultaram um detalhe imenso, como só a palavra minuciosamente escolhida poderia descrever: pri-mor-di-al. O bom escritor deve saber muito mais que palavras: é preciso, antes de tudo, esquecer-se delas. E reinventá-las, ao ponto em que o sentido de saudade se mescle com o de cheiro, e assim, sem pretensão, morango e compota sejam uma coisa só. E vice-versa.

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