Você me pára naquela esquina imunda e eu já mais que tonta, vendo dois de ti, eu metade você. Ali só chovia chovia chovia e eu com cigarro encharcado na mão, nó na garganta e o estômago revirando aquela noite que nunca podia ter mesmo dado em nada. Te perco em meia hora, te acho e esnobo, fujo, fico, não penso em nada porque já era para termos ido embora depois do terceiro chope, misturado com o que mesmo? Ah, sim, alguma coisa com cheiro de passado: você diz que tive a infância conturbada, meu bem, era melhor que agora, sem essas ruas imundas cheias de ambulantes e latas e garrafas pelo chão de pedra portuguesa, isso não. Nem tinha esse gosto amargo de pinheiro de natal, que sempre foi tão doce na época dos meus nove.
Chega, que esse jeans me aperta demais, meus olhos coçam, tanto rímel, tudo é turvo e já quase amanheceu. Canso dessa realidade estragada: me ajoelho em qualquer banheiro de bar, prendo os cabelos, e com concentração cirúrgica enfio o dedo na garganta: vomito de vez toda a podridão dessas madrugadas de quinta. Recomponho-me, ajeito o laço da blusa, puxo o sutiã, lavo a boca e penteio a franja: estou de pé. Retoco o blush, rímel, sombra escura nas pálpebras, olhar de boneca. Corro para você o mais rápido que permitem os saltos, e agora estamos sós, nós dois muito pálidos suando frio nesse quarto escuro, censurando vícios, dividindo medos. Unhas roídas, alguns fantasmas, membros que tremem. Mais que tonta, enxergo dois de ti, eu turva, metade você metade chuva rímel pinheiro de natal salto alto e pedra portuguesa, eu estrago, eu estômago. Depois de amanhã tem mais.
Vers de Circonstance
Há 15 horas