segunda-feira, junho 26, 2006

Entreato

Esbranquiçada invadindo a persiana, arrastava-se a luz pelos corredores e tudo era só bagunça. Cama, gavetas, armários, pensamentos. Cinzeiros cheios, copos vazios, sapatos e papéis, espalhados todos pelo apartamento, disputando o parco espaço com o corpo recém-consciente na cama, pois era, também, de alguma forma, manhã. Assim como todo o resto, bagunçava-se o tempo: duas e vinte e cinco com cara de nove e meia. Precisava comprar cigarros, quem sabe tomar um café. Abre o armário, escava um jeans, agarra uma camiseta, procura os chinelos, chave, sai. A rua por demais clara, também muito movimentada para um domingo, que diabos, com licença, minha senhora. Sair incomodava, era melhor não gastar exposição. A padaria barulhenta e quente, um expresso e um Marlboro, por favor, e decide também comprar um jornal, três reais, que absurdo, bom dia, digo, boa tarde. A cafeína ajudava a despertar, a rua pelo menos parecia mais opaca, e a mente já arriscando estabelecer uma tosca organização. Uma vez desperto, inicia-se a caminhada de volta, duzentos metros da padaria ao prédio, pouco, não fosse o maldito sinal que não abre nunca, o carrinho de bebê atravancando a passagem, e a preguiça agora pressa. Em casa, de volta, maldita chave que não abre, correspondência, conta, carta não, não estou interessado em descontos para chamadas internacionais. Escorrega pelo braço da poltrona e fuma, olha em volta. Põe um samba triste pra tocar, junta a bagunça num montinho e arrasta-a prum canto, até poder circular e alcançar o telefone. A combinação numérica tão bem conhecida flui rápida entre os dedos e os botões, está chamando. A voz atende muda, respira um alô. Ele poderia conversar por horas, passaria dias falando de si, risada casual, voz segura, masculina. Mas só responde um 'sou eu', seguido de um suspiro dela, como vai, bem, e você, vou bem também. Mais silêncio, mais suspiro, olha, não é uma boa hora, te ligo depois, ok? Desliga. O depois viria doze horas depois, quando, chorando, ela ligaria e diria que aceitava, que queria voltar e ficar só com ele mesmo trancada e solta naquele apartamento e naquele cheiro dele de pele, fumaça e perfume, até que a organização das paredes e portas e coisas reais crescessem ganhassem vida e os cuspissem para a rua, onde o mundo era muito mais claro e cheio e barulhento e dolorido e frio. Até lá, apenas os cigarros acesos um no outro, e os dentes contra os lábios sem dó, e as muitas doses de café ao som de Elis. Até lá ele não limparia os cinzeiros, tampouco fecharia as gavetas ou faria a cama. Até lá, antes dela, armários, livros, copos, pensamentos, vida: era tudo uma bagunça.

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